Aula de Futebol - 1ª Lição: Cuspir (Sérgio Antunes)
Estou ensinando meu filho a ser jogador de futebol. Já começou a cuspir.
Desculpem a escatologia. Mas cuspir é fundamental para quem pretenda ser profissional no chamado "esporte bretão".
Eu tenho algum conhecimento sobre a ignóbil arte de cuspir. Já usei o verbo num poema que virou música. Falava de certo tipo que freqüentava uma certa cama de uma certa casa. Folgado que era, entrava sem limpar os pés e, ainda por cima, cuspia no chão. Meu parceiro, homem de muitas notas, bemóis e sustenidos, mas de poucas letras, cismou de cantar guspir, assim mesmo, com gê de gato. Como eu ficasse sem graça de corrigir o talentoso compositor, um amigo comum não se pejou em fazê-lo. Dali em diante o Roberto, o amigo comum, exigiu co-parceria.
Mas comecei falando do meu filho aprender a jogar futebol e quase me desviei do assunto. É claro que ele vai aprender a chutar. Ou não seria futebol.
Como o próprio nome diz, “foot” é pé e “ball” é bola, como se fala na língua dos inventores do esporte. Daí, aliás, o epíteto de “esporte bretão”. Em Português, tentaram chamar de ludopédio. Não pegou. Ainda bem.
Voltando ao assunto, do qual teimo em me desviar, o menino vai aprender a chutar no tempo certo. O capotão é muito pesado. Capotão é o nome da bola. É que antigamente havia uma câmera de borracha dentro das bolas e esta câmera de borracha era envolvida por um couro, um capote de couro que se denominava capotão. Quando eu era criança, pegava sebo de boi no açougue para passar no couro do capotão e assim conservá-lo. Era um tempo em que a gente ganhava bola no Natal e tinha que durar até o outro Natal.
Para alguns narradores esportivos, antigamente chamados de speakers, bola tem o nome de tento. E por extensão, chamam o gol de tento. A partida terminou dois tentos a um. Explico. Naquela bola de antigamente, em que a câmera era envolvida por um capotão, era preciso encher a câmera. Aí se usava um bico que era preso na câmera e ficava disponível para ser cheio por uma bomba de ar, dessas de encher pneu de bicicleta. Depois de usado, o bico era torcido e preso dentro do capotão. E aquele bico se chama tento e, quando a bola batia na gente com o lado do tento, doía pra burro.
Mas onde eu estava mesmo? Ah, sim, no cuspe.
Estou ensinando meu filho a ser jogador de futebol e a primeira lição é aprender a cuspir. Sim, porque é impossível ser um craque de bola, desses que vão jogar na Europa e viram Embaixador da UNICEF, se não souber cuspir bem.
Não me refiro àquelas cuspidas que todo mundo dá, em que a baba teima em se prender no lábio e que dá um trabalhão para se livrar dela, sendo necessário, não raro, usar as costas das próprias mãos. Nem das cuspidas dos avôs, com sonoplastia, antecedidas de fartas limpadas de garganta e muitos minutos de tosses convulsas. Muito menos às cuspidas desaforadas de quem pretenda, com elas, ofender um desafeto. Não. Refiro-me exclusivamente a um tipo de cuspe que só quem é jogador de futebol é capaz de executá-lo.
Cuspe de jogador de futebol é fininho, exato, meticuloso, diria mesmo cirúrgico. Não sai da garganta, como qualquer cuspe amador. A saliva se limita ao mínimo necessário e é armazenada pela ponta da língua, como se fosse servir para pronunciar um som especial só encontrado em Cirílico. Alguns, mais hábeis, ainda conseguem repetir o cuspe várias vezes seguidas, como se o lábio inferior e a ponta da língua fosse uma delicada peça de artilharia.
Enfim, cuspe pra ninguém botar defeito e pra ser exibido na televisão. Pro mundo. Via Embratel.
É claro que, para ser jogador de futebol, não basta saber cuspir. Saber coçar o saco também ajuda. Nem vou entrar em detalhes a respeito da arte de coçar o saco em pleno Morumbi. Mas, para não ficar em branco, é preciso reconhecer a sutileza da coçada com as costas do polegar, ali pela região entre a falange e o tarso, da direita para a esquerda ou vice-versa, começando com uma pressão mais forte e acabando com o gesto de mão torcida. Reconhecer para distinguir daquela outra coçada de time de várzea, em que se usa a mão toda, sem qualquer escrúpulo, agarrando o saco e tudo que lhe seja conexo.
Mas, voltando ao cuspe.
Vejo, aprecio e admiro o cuspe dado no Pacaembu para o mundo, via satélite.
Não atino, porém, a razão pela qual os jogadores se esmeram nesta difícil arte. Penso o que aconteceria se a moda pega entre os praticantes de esportes de salão. Seria um pântano. Uma quadra de vôlei seria um pântano. Felizmente, o campo de futebol tem boa drenagem e suporta vinte e dois cuspidores dedicados, durante noventa minutos e mais acréscimos regulamentares, a cuspir no chamado tapete verde. Aliás, pode ser por isso mesmo que o gramado seja tão verde.
O estilo de jogar futebol muda com a nacionalidade dos praticantes. Mas o cuspe não. Cuspe é universal. Cospe brasileiro, cospe inglês, cospe argentino. Quer saber? Cospe até mulher, que agora também joga futebol. Aquelas suecas loiras, de olhos azuis, todas cospem como vikings alucinadas. O cuspe, além de democrático, é bissexual, comum-de-dois, flex.
Outra coisa. No meio de tanto cuspe, não consta o registro de nenhum acidente. Erro de pontaria, jamais, que poderia começar um grande tumulto. Mesmo sem qualquer regra preestabelecida, os contendores respeitam o cuspe alheio. Não há uma só notícia de qualquer incidente mais grave.
Estou ensinando meu filho a ser jogador de futebol. Ele ainda cospe mal, está começando. Mas há de aprender a arte. Para aprender a chutar bola, ai eu matriculo ele na escolinha do clube.
Desculpem a escatologia. Mas cuspir é fundamental para quem pretenda ser profissional no chamado "esporte bretão".
Eu tenho algum conhecimento sobre a ignóbil arte de cuspir. Já usei o verbo num poema que virou música. Falava de certo tipo que freqüentava uma certa cama de uma certa casa. Folgado que era, entrava sem limpar os pés e, ainda por cima, cuspia no chão. Meu parceiro, homem de muitas notas, bemóis e sustenidos, mas de poucas letras, cismou de cantar guspir, assim mesmo, com gê de gato. Como eu ficasse sem graça de corrigir o talentoso compositor, um amigo comum não se pejou em fazê-lo. Dali em diante o Roberto, o amigo comum, exigiu co-parceria.
Mas comecei falando do meu filho aprender a jogar futebol e quase me desviei do assunto. É claro que ele vai aprender a chutar. Ou não seria futebol.
Como o próprio nome diz, “foot” é pé e “ball” é bola, como se fala na língua dos inventores do esporte. Daí, aliás, o epíteto de “esporte bretão”. Em Português, tentaram chamar de ludopédio. Não pegou. Ainda bem.
Voltando ao assunto, do qual teimo em me desviar, o menino vai aprender a chutar no tempo certo. O capotão é muito pesado. Capotão é o nome da bola. É que antigamente havia uma câmera de borracha dentro das bolas e esta câmera de borracha era envolvida por um couro, um capote de couro que se denominava capotão. Quando eu era criança, pegava sebo de boi no açougue para passar no couro do capotão e assim conservá-lo. Era um tempo em que a gente ganhava bola no Natal e tinha que durar até o outro Natal.
Para alguns narradores esportivos, antigamente chamados de speakers, bola tem o nome de tento. E por extensão, chamam o gol de tento. A partida terminou dois tentos a um. Explico. Naquela bola de antigamente, em que a câmera era envolvida por um capotão, era preciso encher a câmera. Aí se usava um bico que era preso na câmera e ficava disponível para ser cheio por uma bomba de ar, dessas de encher pneu de bicicleta. Depois de usado, o bico era torcido e preso dentro do capotão. E aquele bico se chama tento e, quando a bola batia na gente com o lado do tento, doía pra burro.
Mas onde eu estava mesmo? Ah, sim, no cuspe.
Estou ensinando meu filho a ser jogador de futebol e a primeira lição é aprender a cuspir. Sim, porque é impossível ser um craque de bola, desses que vão jogar na Europa e viram Embaixador da UNICEF, se não souber cuspir bem.
Não me refiro àquelas cuspidas que todo mundo dá, em que a baba teima em se prender no lábio e que dá um trabalhão para se livrar dela, sendo necessário, não raro, usar as costas das próprias mãos. Nem das cuspidas dos avôs, com sonoplastia, antecedidas de fartas limpadas de garganta e muitos minutos de tosses convulsas. Muito menos às cuspidas desaforadas de quem pretenda, com elas, ofender um desafeto. Não. Refiro-me exclusivamente a um tipo de cuspe que só quem é jogador de futebol é capaz de executá-lo.
Cuspe de jogador de futebol é fininho, exato, meticuloso, diria mesmo cirúrgico. Não sai da garganta, como qualquer cuspe amador. A saliva se limita ao mínimo necessário e é armazenada pela ponta da língua, como se fosse servir para pronunciar um som especial só encontrado em Cirílico. Alguns, mais hábeis, ainda conseguem repetir o cuspe várias vezes seguidas, como se o lábio inferior e a ponta da língua fosse uma delicada peça de artilharia.
Enfim, cuspe pra ninguém botar defeito e pra ser exibido na televisão. Pro mundo. Via Embratel.
É claro que, para ser jogador de futebol, não basta saber cuspir. Saber coçar o saco também ajuda. Nem vou entrar em detalhes a respeito da arte de coçar o saco em pleno Morumbi. Mas, para não ficar em branco, é preciso reconhecer a sutileza da coçada com as costas do polegar, ali pela região entre a falange e o tarso, da direita para a esquerda ou vice-versa, começando com uma pressão mais forte e acabando com o gesto de mão torcida. Reconhecer para distinguir daquela outra coçada de time de várzea, em que se usa a mão toda, sem qualquer escrúpulo, agarrando o saco e tudo que lhe seja conexo.
Mas, voltando ao cuspe.
Vejo, aprecio e admiro o cuspe dado no Pacaembu para o mundo, via satélite.
Não atino, porém, a razão pela qual os jogadores se esmeram nesta difícil arte. Penso o que aconteceria se a moda pega entre os praticantes de esportes de salão. Seria um pântano. Uma quadra de vôlei seria um pântano. Felizmente, o campo de futebol tem boa drenagem e suporta vinte e dois cuspidores dedicados, durante noventa minutos e mais acréscimos regulamentares, a cuspir no chamado tapete verde. Aliás, pode ser por isso mesmo que o gramado seja tão verde.
O estilo de jogar futebol muda com a nacionalidade dos praticantes. Mas o cuspe não. Cuspe é universal. Cospe brasileiro, cospe inglês, cospe argentino. Quer saber? Cospe até mulher, que agora também joga futebol. Aquelas suecas loiras, de olhos azuis, todas cospem como vikings alucinadas. O cuspe, além de democrático, é bissexual, comum-de-dois, flex.
Outra coisa. No meio de tanto cuspe, não consta o registro de nenhum acidente. Erro de pontaria, jamais, que poderia começar um grande tumulto. Mesmo sem qualquer regra preestabelecida, os contendores respeitam o cuspe alheio. Não há uma só notícia de qualquer incidente mais grave.
Estou ensinando meu filho a ser jogador de futebol. Ele ainda cospe mal, está começando. Mas há de aprender a arte. Para aprender a chutar bola, ai eu matriculo ele na escolinha do clube.
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